Livro: Discurso sobre a História da Literatura do Brasil
Autor - Fonte: Domingos José Gonçalves de Magalhães
...MINISTÉRIO DA CULTURA
Fundação Biblioteca Nacional
Departamento Nacional do Livro
MANIFESTO PUBLICADO NA REVISTA NICTHEROY EM 1836
Domingos José Gonçalves de Magalhães
I
A literatura de um povo é o desenvolvimento do que ele tem de mais sublime nas idéias,
de mais filosófico no pensamento, de mais heróico na moral e de mais belo na natureza; é o
quadro animado de suas virtudes e de suas paixões, o despertador de sua glória e o reflexo
progressivo de sua inteligência. E, quando esse povo, ou essa geração, desaparece da superfície
da terra, com todas as suas instituições, crenças e costumes, escapa a literatura aos rigores do
tempo para anunciar às gerações futuras qual fora o caráter e a importância do povo, do qual é ela
o único representante na posteridade. Sua voz, como um eco imortal, repercute por toda parte, e
diz: em tal época, debaixo de tal constelação e sobre tal ponto do globo existia um povo cuja
glória só eu a conservo, cujos heróis só eu conheço. Vós, porém, se pretendeis também conhecêlo,
consultai-me, porque eu sou o espírito desse povo e uma sombra viva do que ele foi.
Cada povo tem sua história própria, como cada homem seu caráter particular, cada árvore
seu fruto específico, mas esta verdade incontestável para os primitivos povos, algumas
modificações, contudo, experimenta entre aqueles cuja civilização apenas é um reflexo da
civilização de outro povo. Então, como nas árvores enxertada...
, vêm-se pender dos galhos de um
mesmo tronco frutos de diversas espécies. E, posto que não degenerem muito, os do enxerto
brotaram, contudo algumas qualidades adquirem, dependentes da natureza do tronco que lhes dá
o nutrimento, as quais os distinguem dos outros frutos da mesma espécie. Em tal caso, marcham a
par as duas literaturas e distinguir-se pode a indígena da estrangeira.
Em outras circunstâncias, como as águas de dois rios, que em um confluente se anexam,
as duas literaturas de tal jeito se aliam que impossível é o separá-las. A Grécia, por exemplo,
tinha uma literatura que lhe era própria, que lhe explica suas crenças, sua moral, seus costumes,
uma literatura toda filha de suas idéias, uma literatura, enfim, toda grega.
A Europa de hoje, ou tomemos a França, ou a Inglaterra, ou a Itália, ou a Espanha, ou
Portugal, apresenta o exemplo da segunda proposição. Além da literatura que lhe é própria, dessa
literatura filha de sua civilização, originária do cristianismo, nós aí vemos outra literatura, que
chamamos enxertada, e que não é mais do que uma lembrança da mitologia antiga e uma
recordação de costumes que não são seus. E não só as duas literaturas marcham a par, como
muitas vezes o mesmo poeta se vota à cultura de ambas e, como diz Tasso, falando do mágico
Ismeno:
2
Anzi sovente in uso empio e profano
Confonde le due leggi a se mal nota.
Para prova da terceira proposição, no caso em que as literaturas de modo tal se mesclam
que não é possível separá-las, vemos, na literatura romântica da Espanha, uma mistura de idéias
cavalherescas e arábicas, restos da antiga civilização dos Árabes; algumas vezes ela é cristã na
sua matéria, é arábica quanto à forma.
Mas não são estas as únicas modificações que entre os diversos povos experimenta a
literatura; outras há que, da natureza mesmo [sic] do homem, da civilização e do progresso,
dependem. Porque seja qual for a modificação que sofra a literatura, há sempre algum acordo
entre ela e as circunstâncias peculiares e temporárias do povo a que pertence e da inteligência que
a produz. Assim, a literatura é variável como são os séculos; semelhante ao termómetro que sobe
ou desce, segundo o estado da atmosfera.
Por uma espécie de contágio, uma idéia lavra às vezes entre os homens de uma mesma
época, reúne-os todos em uma mesma crença, seus pensamentos se harmonizam e para um só fim
tendem. Cada época representa então uma idéia que marcha escoltada de outras que lhe são
subalternas, como saturno, rodeado dos seus satélites. Essa idéia principal contém e explica as
outras idéias, como as premissas do raciocínio contêm e explicam a conclusão. Essa idéia é o
espírito, o pensamento mais íntimo de sua época; é a razão oculta dos fatos contemporâneos.
A literatura, abrangendo grande parte de todas as ciências e artes e, sendo elas filha e
representante moral da civiliza...
odo tal se mesclam
que não é possível separá-las, vemos, na literatura romântica da Espanha, uma mistura de idéias
cavalherescas e arábicas, restos da antiga civilização dos Árabes; algumas vezes ela é cristã na
sua matéria, é arábica quanto à forma.
Mas não são estas as únicas modificações que entre os diversos povos experimenta a
literatura; outras há que, da natureza mesmo [sic] do homem, da civilização e do progresso,
dependem. Porque seja qual for a modificação que sofra a literatura, há sempre algum acordo
entre ela e as circunstâncias peculiares e temporárias do povo a que pertence e da inteligência que
a produz. Assim, a literatura é variável como são os séculos; semelhante ao termómetro que sobe
ou desce, segundo o estado da atmosfera.
Por uma espécie de contágio, uma idéia lavra às vezes entre os homens de uma mesma
época, reúne-os todos em uma mesma crença, seus pensamentos se harmonizam e para um só fim
tendem. Cada época representa então uma idéia que marcha escoltada de outras que lhe são
subalternas, como saturno, rodeado dos seus satélites. Essa idéia principal contém e explica as
outras idéias, como as premissas do raciocínio contêm e explicam a conclusão. Essa idéia é o
espírito, o pensamento mais íntimo de sua época; é a razão oculta dos fatos contemporâneos.
A literatura, abrangendo grande parte de todas as ciências e artes e, sendo elas filha e
representante moral da civilização, é mister um concurso de extensos conhecimentos para se
poder traçar a sua história geral ou particular e não perder-se de vista a idéia predominante do
século, luminoso guia na indagação e coordenação dos fatos, sem o quê a história é de pouco
valor e seu fim principal iludido.
Aplicando-se agora, especialmente ao Brasil, as primeiras questões que se nos apresentam
são: qual é a origem da literatura brasileira ? Qual o seu caráter, seus progressos e que fases tem
tido ? Quais os que a cultivaram e quais as circunstâncias que, em diversos tempos, favoreceram
ou tolheram o seu florescimento ? É, pois, mister remontar-nos ao estado do Brasil depois do seu
descobrimento e daí, pedindo conta à história - e à tradição viva dos homens - de como se
passaram as coisas, seguindo a marcha do desenvolvimento intelectual e, pesquisando o espírito
que a presidia, poderemos apresentar, senão acabado, ao menos um verdadeiro quadro histórico
da nossa literatura.
Mas, ante de encetar a matéria, uma consideração aqui nos demora e pede o caso que a
explanemos. Lugar é este de expormos as dificuldades que na execução deste trabalho
encontramos. Aqueles que alguns lumes de conhecimento possuem, relativos à nossa literatura,
sabem que mesquinhos e expassos [ sic] (escassos) são os documentos que sobre ela se podem
consultar. Nenhum nacional, que saibamos, ocupado se tem até hoje de tal objeto. Dos
estrangeiros, Bouterwech, Sismonde de Sis...
ão, é mister um concurso de extensos conhecimentos para se
poder traçar a sua história geral ou particular e não perder-se de vista a idéia predominante do
século, luminoso guia na indagação e coordenação dos fatos, sem o quê a história é de pouco
valor e seu fim principal iludido.
Aplicando-se agora, especialmente ao Brasil, as primeiras questões que se nos apresentam
são: qual é a origem da literatura brasileira ? Qual o seu caráter, seus progressos e que fases tem
tido ? Quais os que a cultivaram e quais as circunstâncias que, em diversos tempos, favoreceram
ou tolheram o seu florescimento ? É, pois, mister remontar-nos ao estado do Brasil depois do seu
descobrimento e daí, pedindo conta à história - e à tradição viva dos homens - de como se
passaram as coisas, seguindo a marcha do desenvolvimento intelectual e, pesquisando o espírito
que a presidia, poderemos apresentar, senão acabado, ao menos um verdadeiro quadro histórico
da nossa literatura.
Mas, ante de encetar a matéria, uma consideração aqui nos demora e pede o caso que a
explanemos. Lugar é este de expormos as dificuldades que na execução deste trabalho
encontramos. Aqueles que alguns lumes de conhecimento possuem, relativos à nossa literatura,
sabem que mesquinhos e expassos [ sic] (escassos) são os documentos que sobre ela se podem
consultar. Nenhum nacional, que saibamos, ocupado se tem até hoje de tal objeto. Dos
estrangeiros, Bouterwech, Sismonde de Sis...